Entrevista concedida a Ana Manuella Soares e
publicada na Revista Em Formação – Volume 1, 2006
Roberto DaMatta é professor da PUC/Rio e autor de vários livros de antropologia social
Em Formação: O que é cidadania no Brasil?
Roberto DaMatta: O ponto de partida desse debate é pensar que tipo de cidadania queremos. A maioria das abordagens do ponto de vista sociológico parte da ideia da inclusão, o que é algo muito importante. Considero, no entanto, que o excluído é também participante social, é o que chamo de anticidadão. A criança abandonada, na verdade, é a criança da rua. Ela participa da sociedade, como um anticidadão, e está obviamente excluída de certas coisas, mas incluída em outras, lamentavelmente como um exemplo a não ser seguido e uma prova do nosso fracasso na distribuição da equidade, um problema mais complexo do que a má distribuição de renda.
Acho que devemos pensar a cidadania como provedora de direitos fundamentais como comer, vestir, habitar, ter segurança e um trabalho, mas não podemos esquecer que ela implica igualmente em obediência à lei e em deveres. Cidadania é uma coisa que se estabelece na vida pública, no chamado mundo da rua, mas não está de forma alguma dissociada da vida intima, do mundo da casa e da família. De fato, ela incluí também o mundo da família. Não se pode ser democrático na escola e despótico em casa. Não se pode proteger os trabalhadores na rua e bater na mulher no lar. Não podemos, por exemplo, tratar nossos empregados domésticos como escravos. Esses trabalhadores têm direitos, como cidadãos que são, mesmo trabalhando em um ambiente ‘familiar’. A gorjeta, por exemplo, é um sintoma de como, num sistema não igualitário, a sociedade compensa a subserviência implicada em certos serviços, como o de servir um jantar ou cortar um cabelo. Se a ênfase para a construção da cidadania for apenas a inclusão, será necessário um Estado forte. Mas penso que uma cidadania moderna e democrática necessita mais do que a inclusão estatizante. Ela requer uma mudança de costumes. É necessário que a mulher e os filhos, por exemplo, sejam tratados no ambiente privado também como cidadãos que têm direitos específicos, e não apenas como ‘mulher’ e ‘filhos’. A família passaria a ser um grupo com interesses frente à sociedade e não apenas um grupamento hierarquizado onde ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’.
Se a ênfase para a construção da cidadania for apenas a inclusão, será necessário um Estado forte. Mas penso que uma cidadania moderna e democrática necessita mais do que a inclusão estatizante. Ela requer uma mudança de costumes. É necessário que a mulher e os filhos, por exemplo, sejam tratados no ambiente privado também como cidadãos que têm direitos específicos, e não apenas como ‘mulher’ e ‘filhos’. A família passaria a ser um
grupo com interesses frente à sociedade e não apenas um grupamento hierarquizado onde ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’.
Como se forma um cidadão?
Primeiro, no âmbito social e político, temos que trabalhar a mudança de costumes. Temos que trabalhar a ideia de uma sociedade baseada na igualdade como um valor, um sistema no qual todos em direitos e as leis valham para todos, não apenas para que os estão no andar de cima, os que podem ou têm em relação aos outros. Devemos traduzir cidadania como algo que fala de uma igualdade de direitos e deveres e não como algo que diz respeito a privilégios. No ensino, isso se traduziria em prover mais para o ensino fundamental e médio. No Brasil, os governos gastam mais com um ensino superior que atende às elites e os setores médios do que com o ensino fundamental e médio que atenderia a outras camadas. Na segurança, também vemos o fenômeno da desigualdade de direitos. Quem tem dinheiro tem segurança. Bairros de classe média alta têm mais policiamento provido pelas administrações públicas porque exercem mais pressão sobre os governantes. Essa cidadania não é, portanto, igualitária, embora ela tenha alguma coisa de democrática, o que é uma conquista.
Como trabalhar uma igualdade ampla numa sociedade que, como o senhor analisa, tem como tradição o favor e o apadrinhamento, o privilégio do parentesco e da amizade?
Não é fácil… A educação para cidadania deve ser baseada numa pedagogia da igualdade. Isso implica que o Estado compense as injustiças sociais através de políticas de inclusão. Mas, além disso, contemple a questão da igualdade, preparando as pessoas/cidadãos para terem voz e serem mais críticos. É preciso educar para que a pessoa/cidadão perca a vergonha, o embaraço para reivindicar seus direitos. Essas ideias têm que ser relativizadas, senão eliminadas, no plano de uma pedagogia democrática.
Que tipo de ensino forma um cidadão?
Primeiro temos que ter uma Escola em que seus diretores, professores, pais e alunos tenham a consciência da igualdade como um valor. Uma Escola onde a direção e os professores tenham um comportamento igualitário com todos os alunos, onde não haja discriminação ou preconceito, ou favorecimentos. Um exemplo dessa educação que privilegia as relações não igualitárias é o fato de os professores serem chamados pelos alunos de ‘tia’ e ‘tio’ nas primeiras séries do ensino fundamental. A professora não é chamada de ‘mãe’ ou ‘madrinha’, mas de ‘tia’. Tio é uma entidade ambígua na nossa sociedade, não tem obrigação de educar ou manter. O ‘tio’ pode ser solidário ou não, pode instruir ou não. A Escola deve ensinar que todos devem obedecer as regras definidas por essa escola de forma democrática. Os professores deveriam se preocupar não só com os conteúdos formais mas também em ensinar o comportamento mais adequado em uma fila ou em um debate. Em como ser capaz de discordar sem brigar. Em saber perder e ganhar nos eventuais embates esportivos e intelectuais realizados pela escola. Em ensinar os tipos de comportamento adequados numa sociedade igualitária, onde todo mundo ganha e todo mundo perde. Essa educação para a igualdade deve ser contemplada e realizada, para que sejam trabalhados os preconceitos em seu estado bruto, quando as pessoas estão em formação.
Quem são os agentes dessa igualdade na Escola?
Os professores, os instrutores, as direções. Eu diria que o mais importante é a clareza de que todos são iguais nesse espaço. O respeito tem que ser para todos e todos têm que respeitar as mesmas regras. Os espaços da escola, os horários, a merenda, as bibliotecas, os educadores, tudo deve estar voltado para todos sem distinção. O importante é que o discurso na escola seja coerente com os outros. Uma diretora tem que estar preocupada em garantir que as regras valham para todos, que a merenda chegue a todos. O aluno que participa desse ambiente de igualdade e de democracia carrega isso para o resto da vida.
Mas na nossa sociedade hierarquizada, a Escola tende a desviar a igualdade, favorecendo as confianças pessoais e as relações. A essas relações de caráter aristocrático, que fazem com que as pessoas, desde o curso primário, aprendam a olhar somente para cima ou para baixo e não para o lado. Será preciso, penso, ensinar que a diferença e o diferente não são nem inferiores nem superiores, mas têm apenas um modo alternativo de ser e, às vezes, de fazer certas coisas. Penso que é nessa área que a escola deveria também atuar, para calibrar e corrigir as distorções que levam à cristalização das diferenças. Será deste modo que iremos estabelecer uma cultura da e para a igualdade.
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