Por Alexandre Amorim
publicado na Revista Em Formação – Volume 3, 2008
Alexandre Amorim é Graduado e Especialista em Literatura Inglesa, Mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
RESUMO
João Guimarães Rosa formou-se médico, foi diplomata e todos o conhecem pela escrita. Homem de múltiplas facetas, foi também assim na hora de escrever: seu sertão não é composto apenas de roupas de couro e buritis, mas de uma complexidade de paisagens e personagens que só se torna possível quando o artista entende que tudo tem suas nuances e que tudo traz em si o potencial de ser e de se transformar. A ciência foi fundamental na formação do autor mineiro, porque o ensinou o método e a pesquisa. Mesmo que se pronunciasse a favor da subjetividade, Rosa nunca deixou de lado o interesse pelo detalhe, pelo escondido e, fundamentalmente, pelo que está para ser descoberto. Rosa flertou com a ciência, mas acabou se casando com a literatura. Trouxe, entretanto, suas experiências anteriores para a nova relação, e soube conjugar a metodologia científica com a subjetividade de suas histórias. Portador de um diploma de médico e de várias cadernetas de anotação, o autor saiu de Cordisburgo, no interior de Minas Gerais, para uma empreitada que serviria como pano de fundo para uma revolução na linguagem: uma aboiada até o coração de Minas. O dialeto sertanejo misturado a neologismos, a observação dos “causos” a seu redor e sua própria vivência ser- viriam para tecer tramas tão ricas que até hoje não conhecem fronteiras – seus livros conseguem provar que em tudo há complexidade, e por isso mesmo há elementos tão díspares em suas histórias interioranas. Como ele mesmo escreveu, “o sertão é o mundo”.
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, cidade a duas horas de Belo Horizonte, no dia 27 de junho de 1908, primogênito de seis filhos. Desde criança era interessado em línguas e, aos nove anos, quado se mudou para a casa dos avós, na capital mineira, já estudava o francês e o holandês. Mais tarde, listaria uma enormidade de idiomas que falava, mas, de acordo com ele mesmo, todos mal. Importava para o jovem Guimarães saber de suas engrenagens, para poder inseri-las na sua língua natal. Como se vê, a ideia de brincar com as palavras vem da infância do autor. Rosa é conhecido por sua prosa recheada de neologismos e expressões emprestadas de outras línguas. Mas, assim como os idiomas, o autor de Sagarana também importava experiências diversas que realmente viveu para entremear em sua ficção. A divisão entre realidade e ficção era por demais limitadora para o autor, assim como era restritiva a ideia de usar apenas as palavras existentes no português.
Guimarães Rosa formou-se médico ainda no início dos seus vinte anos, mas logo deixou a profissão para ingressar no Itamaraty e se tornar membro do corpo diplomático brasileiro. Ele abandonara a medicina afirmando que não nascera para aquilo e que só agia com satisfação no “campo dos subjetivismos”. Hoje, conhecendo sua obra, é possível compreender que se Rosa não deixou a linguagem limitar suas narrativas não seriam as formalidades da ciência que estreitariam sua visão de mundo.
A ciência, no entanto, tem seus melindres. Mesmo que ela esteja intimamente ligada ao conceito de objetividade, nem sempre é possível obedecer às leis formais e volta e meia uma nova descoberta escapa às classificações. E assim, a ciência debruça-se sobre as complexidades de seus objetos de estudo. Rosa teve sensibilidade o bastante para entender que sua formação científica não precisava prender-se à objetividade. Antes, essa formação ajudou – e muito – o autor em sua obra. Ele é inventor de linguagens e de um tipo sertanejo que vai além das fronteiras do sertão mineiro e baiano (“o sertão é do tamanho do mundo”, escreveu) – e só pôde traduzir sua visão desse sertanejo quando compreendeu que o ambiente em que este vivia era muito mais rico do que qualquer estereótipo. A obra de Guimarães Rosa aponta para um mundo geograficamente limitado, mas complexo demais para ser classificado, subjetivo demais para ser descrito formalmente.
Depois de publicar Sagarana, em 1946, o autor passou dez anos preparando sua pièce de résistance: o conjunto de novelas chamado Corpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas. Lançados no mesmo ano, os dois livros ultrapassam 1400 páginas de textos líricos, humanísticos e ao mesmo tempo quase metafísicos, no sentido de transpor a mera observação e descrição da vida interiorana de Minas Gerais e buscar sua essência. Cada personagem tem sua alma investigada e revelada em poesia, cada localidade, cada animal e todo tipo de vegetação traz em si um significado que Rosa vai inserir no enredo de suas histórias.
Em carta de 1958, endereçada a um amigo, o escritor confessa sua:
(…) aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só religião – mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo (tentativa de) com o infinito.
É interessante notar que Rosa chama de religião o que podemos chamar de ciência, quando entendemos que o saber científico é justamente aceitar a complexidade caótica, a “desordem essencial” que nos leva a uma conversa com o infinito. É justamente o caos que nos faz querer saber, que nos faz buscar respostas. Guimarães Rosa não poderia ter sido escritor de outro ambiente que não o sertão, onde a riqueza de diferenças nos faz compreender que nosso diálogo com o mundo não acaba.
Os anos de preparação de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas incluem um período de 1952 em que o autor se juntou a boiadeiros para manejar cerca de 200 cabeças de gado por quase 250 quilômetros no interior de Minas. Em lombo de mula, sempre com uma caderneta pendurada no pescoço, Joãozito (o apelido vem de criança e se manteve entre seus colegas de viagem pelo sertão) anotava tudo o que via, sem nem mesmo olhar para o que estava escrevendo. Prevendo os preconceitos sociais, avisou logo de início que não deveria ser chamado de doutor, nem tratado de forma diferente. A comitiva partiu da Fazenda Sirga, em Três Marias, às margens do rio São Francisco, até a Fazenda São Francisco, em Araçaí. Foram dez dias atravessando campo, rios, fazendas e vislumbrando um mundo que seria traduzido de forma muito pessoal.
Rosa anotava toda e qualquer coisa, “de cor de pedra à casca de árvore, de nome de pássaros e bichos aos apelidos de gente”, como afirmou o vaqueiro Mariano, seu companheiro de viagem¹. É impossível apontar a origem dessa curiosidade, mas com certeza sua formação científica ajudou a cristalizá-la. As preciosas cadernetas contendo suas anotações estão hoje guardadas no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. Infelizmente, o acesso a elas é bastante dificultado por burocracias internas e por política da família do escritor.
Na novela O Recado do Morro, do segundo volume de Corpo de Baile, um personagem chama a atenção de quem conhece a história da aboiada de Rosa. É “seu Alquiste”, um naturalista alemão que lembra muito o próprio autor:
(…) a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos. Ao dito, seu Alquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem. Tomava nota, escrevia, na caderneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande está estrangulando com as raízes a paineira pequena! — ele apreciava, à exclama. Colhia com duas mãos a ramagem de qualquer folhinha campa sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo-d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e Zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu. Outramão, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava traço e figura leal.²
Por essa caricatura, notamos que Rosa estava ciente de sua diferença em relação aos vaqueiros e sertanejos que com ele ajudavam a atravessar os bois para o sul de Minas Gerais. Sabia que já não pertencia completamente àquele mundo, apesar de ter nascido interiorano e não ter deixado de conviver com todos aqueles tipos. Rosa era um observador, e sempre soube que não poderia se fingir um boiadeiro. Era um intelectual, um homem de letras que compartilhava com o sertão o sentimento de se saber rico em suas diversidades. A caricatura de um alemão sem jeito no meio do agreste é uma pista de que sua literatura não é um retrato fiel do interior de Minas e seus habitantes, mas uma tradução muito subjetiva da terra e de seu povo – tradução esta construída através das experiências vividas pelo autor.
Na época de lançamento de suas obras-primas, entretanto, muitos não entenderam dessa forma. Em 1958, o poeta Ferreira Gullar criticava duramente Grande Sertão: Veredas como um livro de que não se consegue passar das primeiras 70 páginas, porque daí em diante a história passa a ser “uma história de cangaço contada para linguistas”. Na mesma época, Adonias Filho, também um escritor preocupado em representar o regional, considerou a obra de Rosa “um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito”. As críticas debruçavam-se especialmente sobre o que hoje é considerada uma das maiores virtudes do texto de Guimarães Rosa: sua capacidade de não imitar o linguajar sertanejo, mas transformá-lo em um amálgama com o linguajar do autor, em que se misturam influências clássicas, mitológicas, literárias e outras, além da própria influência científica. O médico-diplomata-escritor tratava a linguagem como uma alquimia a ser alcançada através de misturas as mais disparatadas possíveis. O “dialeto” sertanejo serve de matéria-prima para construção de novas linguagens: “Em meus textos quero chocar o leitor, não deixar que repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões acostumadas e domesticadas; quero obrigá-lo a sentir uma novidade nas palavras”, o autor ratifica.
O momento de criação das suas obras era uma entressafra de estilos na classe literária brasileira, que ainda sofria da angústia de influências tardias do mo- dernismo, mas ao mesmo tempo buscava sua nova identidade. O mal-entendido dos colegas em relação à escrita de Rosa, entretanto, não durou. Em 1967, três dias antes de falecer, João Guimarães Rosa en- trava para a Academia Brasileira de Letras. Era, en- tão, saudado por Afonso Arinos de Melo Franco, e seu reconhecimento já estava consolidado:
Sois o sertanejo Rosa, conhecedor dos grandes espaços e forçado a tirar de si mesmo, no deserto, os antiplanos e os imateriais da construção. (…) Podemos admirar e partilhar em vós a esperança construtora. Não esqueçamos que os chapadões do Brasil Central permitiram, nas artes plásticas, a maior aventura de liberdade formal do mundo moderno, que é Brasília. Ali nada se demoliu, tudo se construiu, no campo livre. Despertastes as inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas. Fizestes com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil.³
O homem que inventara neologismos e abraçara sua terra para moldá-la em suas criações era, enfim, visto por olhos que sabiam enxergar. E, principalmente, lido por olhos que sabiam notar as entrelinhas de seu texto. Guimarães Rosa é um criador, e não pode ser resumido em definições literárias limitantes.
Inventar palavras inexistentes e exprimir a alma do interior de Minas são duas ações resultantes de um exercício impressionante, o de conjugar realidade e ficção de modo que a obra literária possa tocar os corações daqueles que viveram ou não a experiência expressa naquela obra – no caso da obra rosiana, a experiência sertaneja. Mas não podemos nos limitar a ver os neologismos e as passagens descritivas como a intenção última de Joãozito. Importa justamente o resultado dessa mistura, a alquimia que podemos chamar de “texto”. Não adianta interpretar Guimarães Rosa apenas pelas palavras inventadas ou apenas pela sua maestria em descrever o sertanejo e seu habitat. O texto é maior do que isso, porque nele encontramos a linguagem, ou seja, o resultado do esforço do autor em exprimir sua homenagem à sua terra e sua gente através de seus subjetivismos.
Homenagem no sentido de consideração, de quase veneração por aquilo que está sendo homenageado. O autor jamais teria êxito em sua obra se fosse apenas criar novos termos ou somente descrever outra terra que não aquela que vivenciou e amou. Seria um esforço inútil. A linguagem que amalgama sua experiência com sua vontade de escrever é a verdadeira fonte de admiração na obra de Rosa, porque é nela que observamos a complexidade de sua intenção. Não basta ser linguista, não basta ser regionalista e não basta ser apenas observador ou crítico: é preciso saber traduzir toda essa carga cultural através de uma verve literária, é preciso saber domar a vontade de se expressar através de algo muito pessoal: o estilo.
Reside aí a diferença entre um texto qualquer e um texto literário, se considerarmos esse último como resultado de um esforço em se exprimir. O texto impessoal – ou sem estilo – é a finalização também de um esforço, mas não leva em consideração o caos interior de quem escreve. É objetivo, feito por alguém que não pretende se expressar, mas apenas expressar algo. Quando o estilo se faz presente, está também ali a vontade de quem escreve de se impor. O estilo é a tradução do ânimo – é a voz de uma identidade.
Em Rosa, a linguagem é seu ambiente, seu “campo de pesquisa”, e o olhar que o autor lança sobre esse campo é um dos mais interessantes da literatura. De toda diversidade possível na linguagem, ele escolhe colher um pouco de cada fruto, sem se intimidar com a complexidade de tantas palavras, sintagmas, significados e significantes. Talvez por isso tenha sido incompreendido nas primeiras críticas: não é fácil entender que alguém possa conviver com a complexidade de forma harmônica. Conjugar o sertão e a imaginação culta de um cidadão do mundo não é para qualquer um.
A identidade do autor nascido em Cordisburgo é marcada pela forma com que ele usa seu ambiente (o da linguagem) como espaço para exprimir sua imaginação e sua experiência de forma absolutamente inédita. Alguns comparam Rosa a James Joyce pelos neologismos, mas o irlandês estava longe de querer fundir em um texto suas experimentações linguísticas e a convivência com um mundo cuja linguagem já estava forjada em si mesma. A linguagem sertaneja casada às experimentações de Rosa é única.
A literatura não é uma ciência, e mesmo que exista uma teoria em torno dela, não há como definir seu objeto de estudo (que tipo de livros? Que tipo de textos? A teoria literária deve se limitar a textos literários? Mas o que são textos literários?). E por isso a análise de uma obra literária só pode concluir que ela estará sempre em eterna recriação. Não há como apontar a intenção primária de um autor, não há como definir uma verdadeira expressão de um texto e não como prever as interpretações futuras de seus leitores. A obra literária só pode ser definida pelo seu devir, na concepção de Gilles Deleuze:
Pois não há ser além do devir, não há o um além do múltiplo; nem o múltiplo, nem o devir são aparências ou ilusões. Mas também não há realidades múltiplas e eternas que seriam, por sua vez, como essências além da aparência. O múltiplo é a manifestação inseparável, a metamorfose essencial, o sintoma constante do único. O múltiplo é a afirmação do um, o devir, a afirmação do ser.*
Assim como a própria ciência se metamorfoseia a cada mudança paradigmática de seus conceitos, a leitura de um texto escapa de uma verdade absoluta. A complexidade de uma obra literária é tão grande quanto a subjetividade de seu autor e de seus leitores. A tentativa de definir uma obra vasta como a de João Guimarães Rosa é um esforço em vão, se não compreendermos que essa definição é apenas uma das inúmeras possíveis. Se o sertão é o mundo todo, a obra de Rosa é a vida inteira. E a vida, como diz Riobaldo, não é entendível.
¹ ROSA, João Guimarães. “Entremeio: com o vaqueiro Mariano”. In: Estas Estórias. 2.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p. 67-98.
² ROSA, João Guimarães. “O Recado do Morro”. In: Corpo de baile. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 411.
³ Trecho do discurso “O Verbo e o Logos”, de Afonso Arinos de Melo Franco, na posse de João Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, em 16 de novem- bro de 1967.
* DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Editora Rio, Rio de Janeiro, 1976.
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